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Nota: Este artigo é de Francisco Fernandes Lopes, data de 1945 e algumas partes  foram publicadas: na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, rubrica Olhão; num folheto intitulado Olhão, terra de mistério, de mareantes e de mirantes, Olhão s.d..; e na Revista Portugal d'Aquém e dalém mar (1952).

 

O que é o cubismo? [título atribuído pelo webmaster]

O que será Olhão no futuro, ninguém, nem nenhum plano de urbanização o poderá visionar. Não é impossível, porém, que a incompreensão teimosa e pretensiosa dos homens pouco esclarecidos lhe venha dar um carácter irreconhecível: através dum plano sistematizar para a urbanizar banalmente, internacionalmente, descaracterizando-a.

Ora, o aspecto panorâmico de Olhão é único no País - e poder-se-ia dizer - único em toda a Europa, mesmo em todo o Mundo - aspecto derivado da estrutura especial das suas casas, pequenas ou grandes, estrutura que em menor ou em maior grau se conserva ainda. E deve conservar-se.

Porque, se ao transformarem-se as primitivas cabanas em casas tivessem estas terminado simplesmente por terraço-soteia, total ou apenas parcialmente, não estaríamos ainda num aglomerado de casas diferente do que se encontraria no campo em redor. Rareando os telhados cada vez mais, aproximar-nos-íamos do aspecto de Tânger, de Muley-Idriss, de Rabate, de Tunis. Se os terraços ou soteias fossem horizontais, sem parapeito algum, estaríamos como na Síria ou outro Oriente qualquer. Açoteias (ou soteias, como aqui se usa dizer com mais arábica propriedade) há-as por todo o Algarve ou pelo menos por todo o campo do Sotavento algarvio, - como pelo Sul da Espanha e por todo o Norte de África desde Marrocos à Líbia... Há-as na Síria e na Pérsia onde o cubismo das casas chega a ser perfeito, não tendo os terraços rebordo algum...

Em Marrocos, porém, em especial, costuma existir um rebordo ou parapeito, mas muito baixo; e se a razão estará em a soteia não ser utilizada senão acidentalmente, encostando-se-lhe então uma escada de madeira para tal fim, (escalier de fortune) – (pois as mulheres estão pelo Corão proibidas de se exibirem sobre os terraços - segundo me disse aqui mesmo, o ilustre Prof. Lévy-Provençal), em Olhão, o caso muda completamente de figura; porque a soteia é utilizada como uma dependência ou extensão, ou ampliação do espaço livre da habitação e é assim aproveitada para todos os mais diversos fins de utilidade ou recreio, (nunca, porém, como um malavisado professor universitário de geografia fantasiou: para recolher as águas da chuva para cisternas (!) - que em Olhão nunca existiram, sendo o solo do sítio do olhão, riquíssimo em poços, de água doce e salobra, de vários lençóis subterrâneos.


Soteia de casa alta com pangaio e degraus para o mirante.

Olhão não é pois apenas um "mar de açoteias" (como a próxima aldeia da Fuzeta).

Em Olhão, o panorama surpreendente inclui outra coisa: soteias sempre com parapeito alto, sobre as quais, quando se não sobe a elas por escada de pedra e cal vinda do quintal (nunca da rua, mas de dentro da própria casa, rompendo-se então forçosamente o plano da soteia), o problema foi resolvido não por meio dum alçapão (como no Sul da Itália e na Suíça, por exemplo) mas por meio de uma espécie de guarita: um pangaio, com um tecto inclinado, e uma porta no topo ou no lado livre, ficando o pangaio sempre num canto da soteia. Ora este tecto que começou sendo um tabuleiro coberto de telha mourisca, tornou-se, com o tempo, de linha quebrada, sempre coberto de telha; e mais tarde a sua parte terminal passou a ser horizontal, servindo de tecto ao patamar quadrado, enquanto a parte inclinada servia de tecto à escada. Desde então o revestimento de telha desapareceu, substituído pelo de ladrilhos.

Muitas vezes a chaminé cúbica e simples (nunca, em Olhão, com ajuramento arrendado, como é típico para o interior do Algarve) fica incorporada no pangaio ou coalescente com ele.

 

Chaminé de balão

Mas não bastaram aos olhanenses as soteias de parapeito alto com pangaio. Em Olhão nasceu a ideia de pôr uns degraus sobre a parte inclinada do pangaio e de por eles subir, como por escada, ao pequeno terraço quadrado que então se circundou de parapeito mais ou menos alto, à laia de púlpito. E eis surgido o embrionário mirante. Mas não se parou aqui, neste rudimento: considere-se alargado o pequeno patamar de entrada na soteia, ou construída sobre esta (sempre a um canto ou a um dos lados, nunca ao centro da soteia) uma autêntica casa. E agora, para tecto desta casa, em vez de um telhado que sistematicamente se repudiou (apenas esporadicamente um ou outro caso se nota, antigos todos), eis uma nova soteia, ladrilhada como a primeira, e circundada de parapeito alto, um mirante, de seu nome próprio, ao qual se sobe por escada exterior, de alvenaria, (não de madeira ou ferro...), sobre um, dois ou três arcos assentes em pilares finos ou em cachorros de pedra, metidos de través. O mirante fica assim naturalmente de superfície menor do que a soteia sobre a qual se eleva, em geral a um canto, ou, se a meio, encostado a um lado da soteia (nunca no meio da soteia a cobrir lanternim de pátio interior, como se observa por vezes na Andaluzia), visto que cobre a casa de cima da soteia (assim se lhe chama) e não um pátio interior que em Olhão se não conhece...Por vezes, em Olhão, a soteia fica reduzida a um pequeno quintal no 1.° andar, sobrepondo-se-lhe então uma 2.a soteia a cobrir todo o 1.° andar, soteia que pelas suas dimensões extensas não merece o nome de mirante, mas o de soteia do prédio, propriamente. E sobre esta soteia extensa eleva-se então o verdadeiro mirante. (Vê-se assim que o nome de soteia se aplica ao primeiro e mais extenso dos terraços sobrepostos e o de mirante ao 2.° e naturalmente menor).

Sobre o mirante eleva-se às vezes um outro mirante, similar, ocupando, de lado a lado, metade aproximadamente do terraço do primeiro; ou então, num canto deste, apenas uma espécie de púlpito ou torre de vigia, a que se dá o nome de contra-mirante.

 


Soteia de casa térrea com 1º e 2º mirantes.

De qualquer maneira porém: três terraços sobrepostos, em pirâmide. Por esta ligeira análise, já o turista poderá orientar-se, contemplando agora as gravuras aqui documentadas, onde essas e outras realidades especificamente olhanenses se patenteiam.

Até agora não se tem passado, em Olhão, desta sobreposição até três terraços; mas compreende-se que um urbanismo consciente desta especificidade cuja origem continua misteriosa, sendo, ao que comprovadamente parece, única em todo o Algarve, em todo o Portugal, em todo o Mundo mesmo, leve mais alto a espécie de pirâmide de terraços... É que, por acaso, a pirâmide apresenta-se por vezes mais ampla e mais numerosa... Sim: pela coalescência de casas que ulteriormente se puseram comunicantes por forma a constituírem um mesmo prédio, acontece que mais três terraços se encontram a diferentes alturas... Tal é, por exemplo, o prédio em que habito, na Rua Vasco da Gama, n.° 20, que apresenta nada menos de quatro, e do alto do qual os turistas curiosos ou os estudiosos arquitectos... do Universo, podem verificar, como inegáveis realidades, exemplares que se metem aqui pelos olhos adentro, estas e outras novidades e originalidades da estranha e misteriosa arquitectura local olhanense, genuína, inerudita...

Soteia de casa térrea com mirante e contra-mirante

 

Olhão, 7-VIII-1945

Francisco Fernandes Lopes