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O Padre António Delgado

O comendador, monsenhor, cónego e doutor António Baptista Delgado (Padre Delgado), filho de João António Delgado (piloto-mor da Barra do Guadiana) e de Maria da Encarnação Baptista, nasceu em 16 de Outubro de 1884, em Vila Real de Santo António, e faleceu em 16 de Agosto de 1967, numa casa de Campina (S. Brás de Alportel).

Depois da escola primária entrou no Seminário de S. José, em Faro, em 1894 (com 10 anos de idade), onde se destaca pela sua inteligência, pelo que o bispo D. António Barbosa Leão resolve mandá-lo para Roma em 1904 (com 20 anos), onde faz a licenciatura e o doutoramento em Filosofia, na Universidade Gregoriana de Roma.

Recebe o diaconado em 1907 e o presbiterado em 1909 (na Igreja Católica existe uma progressão hierárquica em que o primeiro grau é o de diácono, seguidamente o presbítero ou padre e, finalmente, o bispo).

Em Outubro de 1909 tornou-se também professor e Diretor Espiritual do Seminário de Faro e promotor do Bispado.

Em 1915, passou a ser o cónego capitular da Sé de Faro e finalmente em 25 de Agosto de 1919 foi nomeado prior de Olhão (aos 35 anos). Em acumulação, ficou encarregue do serviço pastoral de Quelfes em 1924, de Pechão em 1931 e, apenas no ano de 1940, de Moncarapacho. Finalmente em 1957 foi nomeado Vigário da Vara de todo o concelho de Olhão e acumulou cargos vários de topo no Seminário de Faro.

Assim, o Padre Delgado, para além da influência que tinha na vida religiosa em todo o Algarve, permaneceu como quase exclusiva autoridade espiritual em Olhão de 1919 a 1965, e nestes longos 46 anos cumpriu a função de ser um autêntico “pai”, com o autoritarismo próprio da época, mas sempre respeitado pela sua dedicação aos problemas dos mais pobres, à sua capacidade de influenciar os poderosos em prol da sua obra caritativa, e à sua incomum envergadura intelectual.

Quando chegou a Olhão, a agitação política e social era enorme. Estávamos nos últimos anos da 1ª República e as fomes, as greves, mas também as perseguições violentas à Igreja eram ainda recorrentes. Só posteriormente, a partir de 1926, com o advento do Estado Novo, a agitação social começou a diminuir, obviamente com a imposição totalitária da ordem pública, e a Igreja recompôs a sua autoridade. No entanto, muito cedo Olhão percebeu que tinha um padre diferente, bem acima do expectável, que progressivamente se fez respeitar por todos, incluindo os anticlericalistas da época.

Sendo muito comunicativo e empreendedor tornou-se conhecido pela forma como utilizava os seus conhecimentos em Lisboa e noutras altas instâncias para conseguir um emprego ao filho de um pobre marítimo, um internamento hospitalar para a sua mulher, a anulação de uma coima ou retirar um desgraçado da prisão, a libertação do serviço militar ao filho de mais uma família carenciada, ou um donativo para a sua obra social, de tal forma que corriam versos como “Se estiveres em aflição, procura o Prior d’Olhão”… ou “Quando os pobres não têm e os ricos não dão, todos batem à porta do prior de Olhão”!

Preocupava-se por conhecer todos pelo nome e falar dos problemas de cada um, de forma que durante os 46 anos em que foi padre em Olhão, teve uma verdadeira auréola de protetor dos mais desfavorecidos!

Deve-se ao Padre Delgado a criação de três instituições: uma Escola Primária para crianças pobres, o antigo Asilo dos Velhos (atualmente gerido pela Santa Casa da Misericórdia), e o Asilo das Meninas em 1930 (atualmente o Centro de Bem Estar Social de Nossa Senhora de Fátima).

A Escola Primária teve como professores o sr. Manuel Joaquim da Silva e a D. Ondalina Xavier, e para além da instrução gratuita aos mais pobres, dava-se material escolar, pão, queijo e leite à hora da merenda, e os mais carenciados levavam tudo isto para os seus irmãos mais novos comerem em casa. Funcionava nas traseiras da antiga Casa Paroquial (onde hoje está instalado o Agrupamento de Escuteiros da Paróquia). Deixou de funcionar na década de 1960.

Em determinado momento, a Santa Casa da Misericórdia passou a administrar o Asilo dos Velhos, pelo que o Padre Delgado passou a despender as suas energias sobretudo em prol do Centro de Bem Estar Social de Nossa Senhora de Fátima, que tinha funções de apoio materno-infantil às famílias com menos recursos, e sobretudo meninas sem família.

O Pe. Delgado, para manter a sua obra social, era extraordinariamente assertivo a pedir os seus donativos. Era conhecido por calcorrear o Algarve a pé, em carroça, de comboio ou em automóvel para os conseguir, e são muitas as histórias curiosas pela sua forma peculiar de angariar fundos.


   2009.11.01 - Grande Reportagem SIC - os LAÇOS e os NÓS (parte 1 de 4) sobre as meninas do Centro de Bem Estar Social de Nossa Senhora de Fátima. Tem ainda as partes 2, 3 e 4.

Este Centro iniciou-se em 1930 com as irmãs Olímpia do Nascimento, Virtude Maria Santíssima e Deolinda de São José. e foi sempre orientado por Irmãs Franciscanas Hospitalares da Imaculada Conceição até 24 de Junho de 2014. Após esta data continuou ligado à Igreja embora assentando numa equipa mais técnica. Tem capacidade para recolher 60 meninas pobres e é apoiada financeiramente pela Segurança Social e muitos donativos privados. Estas meninas podem entrar desde os 3 anos e permanecer no Centro até aos 23 anos, estudando e trabalhando fora do Centro. Está dividido em várias secções onde existem meninas de todas as idades e que funcionam como famílias. Aos fins-de-semana ou nas férias as meninas podem visitar as famílias biológicas ou famílias benfeitoras.

Frequentemente, depois de receber uma saca de batatas (ou outro qualquer produto) dizia: ”isto me deste tu sem eu ta pedir, agora dá-me outra que te peço eu…”!

Uma ocasião foi pedir pano de lençol para as suas meninas do Asilo, mas o lojista, alegando não ter naquele dia o dito pano, deu-lhe outro para outra utilização. Ele levou-o agradecido... mas não sem antes avisar que no dia seguinte lá passaria para levar o prometido pano para lençol.

Outra vez, um lavrador deu-lhe um porquinho mas como este à saída fazia muito barulho, o Pe. Delgado volta ao lavrador e explica-lhe que para diminuir a infelicidade que o dito porquinho sente de se ver sozinho no mundo, seria bom que lhe desse um outro…

A verdade é que muitos tentavam escapulir-se ao Pe. Delgado, quando o viam, para não serem confrontados com os seus pedidos. Ele que não recuava nos mesmos pedidos, tinha perfeita consciência do incómodo que por vezes causava aos outros, pelo que usava o humor para continuar a pedir. Uma vez chegou à Repartição das Finanças e muito alto disse: "Hoje não venho pedir, venho dar... !" - fez uma pausa teatral, deixando todos um pouco mais relaxados, e continuou - "hoje venho dar-vos a honra de todos serem sócios da associação do Centro de Bem Estar Social de Nossa Senhora de Fátima!!". E todos não tiveram outra alternativa senão o de se fazerem sócios e logo ali pagarem as quotas...

Expressava a sua preocupação pela pobreza quando dizia que “É inútil pregar a palavra de Deus a barrigas vazias. Isso é como deitar água numa panela furada!” e frequentemente alertava que "temos de prestar contas a Deus do dinheiro que nos dão; e esse dinheiro não é nosso, é dos pobres, e por isso não o vamos queimar em foguetes"!

Considerava que a fé devia resultar em obras concretas e, neste sentido, não era um místico mas mais um missionário. O seu pragmatismo na administração dos bens e das burocracias eclesiásticas era bem conhecido.

A propósito dos batizados, quando por qualquer razão falhavam os padrinhos, ele requisitava um transeunte conhecido que por ali tivesse o azar de passar e, imediatamente, o convertia num padrinho de batismo ou de casamento! (uma história humorística sobre um destes batizados poderá ler aqui)

Num momento de grande penúria, as Irmãs do Asilo das Meninas vieram dizer-lhe que apesar da quaresma, e portanto ser proibido comer carne, pouco mais havia para comer que um pedaço de porco… O Pe. Delgado muito calmamente recomenda-lhes que comam mesmo o porco porque “o pobre bicho era um desgraçado que só comeu restos de peixe, pelo que decerto a sua carne saberá mais a peixe que a porco…”!

Por outro lado, conta-se também que o Padre Delgado seria amigo do próprio Salazar e através dele conseguiria muita da sua influência. Isto provavelmente não será correto mas tem um fundo de verdade: parece que o Padre Delgado seria conhecido da governanta de Salazar – a famosa D. Maria – porque esta o teria encontrado e conhecido em Roma. Sabe-se que a pedido da D. Maria e através do Pe. Delgado saíam de Olhão presentes para Salazar (figos, amêndoas, conservas e outros produtos) através de um motorista olhanense da EVA (o sr. Eduardo Sacramento).

É um facto que o Pe. Delgado tinha uma visão salazarista e autoritária da sociedade. Era conhecido por distribuir bofetadas, com alguma ligeireza, sobretudo às crianças desobedientes, mas não só. Por outro lado, como salazarista convicto que era, chegou a testemunhar na polícia contra jovens anti-salazaristas. Coerentemente, era também um conservador nos costumes, e condenava veementemente a forma que considerava “indecorosa” como algumas mulheres se vestiam ou pintavam. Uma vez, recusou a comunhão a uma rapariga de lábios demasiado pintados dizendo: “O Senhor não entra nessa boca falsa. Vai lavá-la e volta.”

Levava a religião e o seu celibato muito a sério. Já aqui referi que a escola primária que fundou teve um professor chamado Manuel Joaquim da Silva que em determinada altura (finais da década de 1930) resolveu casar-se com uma senhora viúva. Atendendo o dito professor ser um antigo seminarista, o Padre Delgado considerou o seu casamento uma traição religiosa e chegou a deslocar-se à escola e entrar em "vias de facto" com o professor, após uma breve e violentíssima discussão à frente dos alunos!

Muitas histórias podem ser lidas no jornal da Paróquia em 1995 (ver em Farol – Paróquia da N. Sra. do Rosário, Olhão, Maio/Junho de 1995).

Curiosamente, na época havia em Olhão um número surpreendente de grandes figuras intelectuais sendo o Pe. Delgado, seguramente o que mais representava o melhor da Igreja e das doutrinas conservadoras do momento. Do mesmo lado do espectro encontravam-se também Antero Nobre e José Fernandes Mascarenhas, embora ambos muito mais novos. Um outro homem, também genial, e com a mesma idade, figurava no extremo oposto do espectro doutrinário do Pe. Delgado, o Dr. Francisco Fernandes Lopes, considerado um agnóstico liberal e anarquista, embora respeitável à luz do regime. A verdade é que, por vezes, os dois gigantes intelectuais de Olhão punham-se a discutir os seus pontos de vista, sempre com o maior respeito que ambos nutriam um pelo outro e, pelo menos uma vez no Café Avenida, por volta de 1960, a discussão demorou horas, e atraiu uma pequena multidão de curiosos que tentavam perceber a troca de argumentos.

Após a morte do Pe. Delgado, o Dr. Francisco Fernandes Lopes apesar do seu anticlericalismo acabaria por reconhecer que "o padre Delgado conseguiu fazer, em Olhão, aquilo que ninguém fizera e muito possivelmente ninguém faria."

Em Agosto de 1965, o padre Delgado aposentou-se e foi viver para S. Brás de Alportel numa pequena casa que tinha no sítio de Campina e onde viviam muitos amigos e antigos benfeitores da sua obra.

Faleceu apenas 2 anos depois, em 16 de Agosto de 1967, em S. Brás do Alportel, mas foi sepultado em Olhão e, surpreendentemente, estiveram apenas cerca de 100 pessoas presentes!! Aparentemente, o funeral processou-se sem alarido e informação, embora não deixe de ser extraordinário e difícil de explicar este facto!

Felizmente, ao longo da sua vida e depois de morrer, fizeram-se várias homenagens:   

Uma biografia histórica como esta que aqui escrevo corre o risco de esquecer muitas dimensões de um homem, e cometer a injustiça de hiperbolizar alguma facetas relativamente a outras da sua vida.

Ainda hoje há em Olhão quem defenda fervorosamente o Pe. Delgado e quem insulte impiedosamente a sua memória por motivos ideológicos, ou porque foi um dos que em algum momento foi contemplado por uma das suas bofetadas...

Na minha perspetiva podemos dizer que sendo verdade que foi um homem autoritário, que colaborou com o regime salazarista, também é um facto insofismável que se preocupava com a pobreza e foi com o seu esforço de décadas que se conseguiu criar e implementar a sua obra social. E isto ninguém lhe pode tirar!

António Paula Brito - 3 de Novembro de 2012
 

Nota: um agradecimento especial à D. Geni, ao sr. Eduardo Cristóvão (sacristão da Igreja Matriz de Olhão) e ao Pe. Afonso Cunha pela colaboração essencial nas informações e artigos que me forneceram; quanto a quem quiser saber mais sobre a vida e obra do Pe. Delgado recomendo entre toda a bibliografia referida em baixo o livro de João Villares "A vida em Olhão no tempo do Padre Delgado", sem dúvida o maior trabalho sobre o assunto.

 

Bibliografia: