Olhão

In “O ALGARVE ILUSTRADO” de 15 de Setembro de 1880

Pelos fins do século 18 uns pobres pescadores, vagando pelas praias do Algarve, sem fixarem vivenda, lançando aqui as redes, para amanhã seguirem avante em procura de mais piscosas paragens, chegaram a um sítio, cerca de oito milímetros a leste da cidade de Faro, e, seduzidos pela abundância de boa água potável que dali derivava até ir misturar-se com o mar, assentaram habitação definitiva, vivendo do produto da sua indústria. O aparecimento de algumas cabanas naquele lugar chamou ali outros pescadores que, retidos pela afluência do pescado, igualmente se estabeleceram na praia, levantando as humildes casas onde mais lhes convinham. O mar com os seus peixes e a terra com os seus frutos e o inesgotável manancial de dulcíssima água, asseguravam-lhes existência fácil. A nascente povoação medrou e fez-se-lhe mister um nome: o capricho de alguém foi tomá-lo do olho de água e o fortuito agregado de mesquinhas choças chamou-se Olhão.

Tal é a tradição lendária sobre a fundação da populosa vila cujas casas deslumbrantes de alvura sorriem aos que as contemplam do elevado terraço da ermida de Santo António em Faro.

Sejam porém quais forem os foros de verdade que possa ter a lenda, o certo é que por volta de 1790 as cabanas de Olhão tinham cedido lugar a mais confortáveis habitações, e a povoação contava com 4200 habitantes, dos quais a maioria dedicava-se à pesca e uns oitocentos percorriam os mares em navegação de cabotagem. Alguns anos depois, em 1808, Olhão tomara grande incremento e o rei D. João VI dava-lhe honras de vila com juiz de fora.

Na sua obscuridade, em perpétua luta com o oceano, que ainda então invadia altivo as esféricas e tortuosas ruas da povoação, os olhanenses ganhavam lenta, mas perseverantemente o conceito, hoje indisputável, de primeiros marinheiros de Portugal. Nos seus frágeis caíques aventuravam-se ao longo de toda a costa portuguesa e, descendo também ao Sul, percorriam o mar da Berberia, em frente de Larache ou, penetrando no Mediterrâneo, faziam concorrência de pescarias aos vizinhos espanhóis.

Nos seus princípios, desconhecendo as leis da simetria, as ruas de Olhão casavam-se irregularmente, formando inesperados ângulos e, elas mesmo em si irregulares, preparavam o extravagante aspecto que hoje apresentam, por mais esforços que hajam feitos as diferentes vereações que têm dirigido os destinos do município.

Para o viajante que, partindo de Faro por uma tarde amena de estio, entra em Olhão pelo ramal que se prolonga com o cemitério, agradável é a impressão que recebe, vendo o comprido passeio arborizado que actualmente decora a vila e que a nossa fotografia representa uma boa parte. Se o viajante! Deixando o passeio, segue a rua do Rosário e se dirige à praça, admira um grande movimento, raro em povoações pequenas. De um e outro lado são lojas, vendas, armazéns de trigo, farinha e outros produtos. Chegando à praça não tem que admirar construções elegantes ou gigantes, mas vê prazenteiramente A floresta de mastros que se balouçam brandamente ao impulso da leve ondulação de maré que sobe. Ao lado dos pequenos caíques de que fala o benemérito Silva Lopes na sua tão rara quanto preciosa Chorographia do Reino do Algarve, vê possantes embarcações cuja lotação não é inferior à de algumas escunas; mas pelo antigo amor à armação de caíques, conservam-lhes as velas triangulares ou latinas que tão rápido andamento imprimem aos navios.

Defrontando com o Porto existe o mercado de peixe, grosseira mas sólida construção que de há muito possui a vila.

Se, porém, satisfeito da vista do Porto, o viajante quer tomar para qualquer dos lados, perdida está a desfavorável impressão que até aí conservava acerca da vila. Suponhamos que o visitador atravessa o mercado de peixe e segue o extenso cais para a parte do poente; entra no bairro ali vulgarmente conhecido pela denominação de Barreta. Prepare-se o viajante para a surpresa, pois vai ser transportado para outra povoação. De feito, as ruas da Barreta torcem-se, cruzam-se, fecham-se de repente, ou estreitam a ponto de ser forçoso unir bem os braços ao corpo para poder passar, como sucede na afamada travessa dos abraços.

Enfadado aqui, disparando em estrondosa gargalhada além no fundo de um cul de sac, o viajante emaranha-se no labirinto, julga-se por momentos livre dele ao desembocar numa rua relativamente mais ancha, para logo voltar aos estreitos corredores, onde contudo lhe não escasseia o ar porque são baixas as paredes. Curioso, como deve ser todo o viajante, o visitador lança os olhos para o interior das casas abertas e observa de relance as criancinhas meio nuas no regaço das mães que, sentadas junto à porta, se ocupam em trabalhos de costura, se não é que em plena rua cozinham a ceia, acurvadas sobre os fogareiros. Notando estes usos matriarcais, o viajante sai enfim do dédalo e deseja naturalmente voltar ao passeio para repousar alguns momentos sentado num dos bancos entre as árvores. De caminho entre na Igreja Matriz, de ataviado edifício de uma só nave e três capelas, cujas douraduras estão já enegrecidas pela acção do tempo. É notável a igreja pela sua fortíssima abóbada que se arqueia a grande altura, amparando-se tão somente nas paredes exteriores, sem uma só coluna que a esteie interiormente. Perto deste templo há uma igreja mais pequena apelidada de Senhora da Soledade, onde se venera a majestosa imagem do Senhor Jesus dos Passos.

Em face da Igreja Matriz está o edifício do Compromisso Marítimo e respectiva farmácia. O Compromisso Marítimo de Olhão é o mais rico do Algarve e podemos seguramente afirmar que é a essa excelente instituição que se deve o desenvolvimento marítimo da vila.

Se visitarmos ainda os dois clubes ou sociedades recreativas e o teatro há pouco improvisado, teremos percorrido tudo que actualmente há de notável na povoação. Como acabais de ver, não há em Olhão nenhum edifício digno de pasmo ou, sequer, da minuciosa atenção do viajante; mas se falecem grandezas materiais, há que admirar-nos da energia indomável daqueles bravos marinheiros que hoje são escolhidos com preferência para os navios, já costeiros já de longo curso, das melhores companhias marítimas. Em arrojo ninguém lhes leva a palma: o autor destas linhas viu um caíque dos de menor lotação, o qual fez a longa e perigosa viagem de Olhão a Odessa, no fundo do mar Negro, donde voltou carregado de cereais. Assaz conhecido é também o feito do mestre Manuel Martins Garrocho que em 1808 se atreveu com o mar e os ventos, levando ao príncipe D. João VI, então no Brasil, a fausta notícia de haver Portugal sacudido o jugo francês.

Hoje Olhão possui caíques que navegam para os portos de Portugal, Espanha, França, Itália, Argélia e Marrocos. Outros caíques mais pequenos pescam no mar do Algarve ou no de Setúbal, indo vender o peixe principalmente a Lisboa.

É de ver o espetáculo da despretensiosa coragem com que aqueles marinheiros em humilde barquinho entram a barra de Lisboa acossados pelo vento e pela vaga e vão seguros lançar ferro na praia, em quanto, batidos pela tempestade, navios alterosos soçobram infelizmente nos escolhos da barra.

Não é porém só de navegantes e pescadores a população da vila, que na mesquinhez das suas casas abriga mais habitantes que a capital do distrito, segundo o têm provado recentes estatísticas. A classe comercial e industrial é numerosíssima. Não faltam ricos proprietários lavradores que possuem belas quintas e pomares nos arredores.

Ultimamente Olhão viu elevar-se uma fábrica de louça, cujos produtos rivalizam já com os das fábricas de Aveiro e Figueira.

Não há muitos anos o governo criou na vila a comarca de 3ª classe, com o que lhe aumentou a importância que por outros títulos já tinha.

Cremos que os esforços combinados da câmara municipal e de alguns capitalistas trarão em resultado a ampliação da vila com a edificação de novos prédios, para o que há bons terrenos, sobretudo no sítio onde atualmente se fazem as duas feiras anuais, uma em fins de abril e a outra em setembro.

Faro.

Paula Nogueira

In “O ALGARVE ILUSTRADO” de 15 de Setembro de 1880