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AS FESTAS DOS SANTOS POPULARES

Mas não era só na época carnavalesca, de noite e de dia, que em Olhão se dava largas à folgança. Também o S. João tinha as suas honras. Por S. João definia-se uma época que começava nos princípios de Maio, englobava os dias dos Santos Populares e terminava no dia de Santa Isabel, uns dias após o dia de S. Pedro.

Nesta época era rei o "Mastro de S. João".

O "Mastro de S. João" era um recinto onde se dançava a pares ou em baile de roda com cantares ao desafio e em versos improvisados entre homem e mulher e adequados a cada um com música própria tradicional dada unicamente pela voz. A música para a dança aos pares era dada pelo "Fole e Ferrinhos" isto é, um harmónio e um triângulo de ferro que era percutido com um ponteiro também de ferro.

O "Mastro de S. João" era formado por um conjunto de paus grossos e fortes espetados no solo, com um deles, o maior, colocado no centro do recinto e os outros seis ou mais, na periferia a delimitar esse mesmo recinto e ligados todos por cordas, do central para os periféricos e estes entre si. Os paus e as cordas, eram todos enrolados em marcela, uma erva seca de flores amarelas muito cheirosa e vulgar no nosso país e nas dunas da Ria Formosa. O pau central ou mastro, está encimado por uma esfera que se chama a "Charola" do mastro e nas guias, por cima da marcela, há inúmeras bandeirinhas de papel de seda e outros enfeites de cordões de papel, e bem assim balões de várias formas. Antigamente, quando não havia electricidade, eram estes balões com uma vela dentro que constituíam a iluminação do recinto, auxiliados por um ou dois gasómetros.

Nos espaços entre os mastros mais pequenos que delimitam o recinto do baile, estavam os bancos para as meninas dançadeiras e suas famílias se sentarem. O tocador ou tocadores colocavam-se ao centro do recinto num pequeno palanque encostado ao mastro ou até fora dele.

Salvo raras excepções, vi sempre nos mastros de S. João, a música ser tocada por tocadores de harmónio. Um ou outro "mastro", por qualquer razão, tinha uma vez por outra, os chamados "toques finos": um bandolim e guitarra ou dois bandolins. Só nos últimos anos de vida dos "mastros" apareceram pequenas orquestras. Uma artista de renome nacional foi vocalista e muito apreciada numa destas pequenas orquestras que abrilhantavam em música os "mastros" de S. João em Olhão.

Quando estas orquestras apareceram já a festa dos "mastros de S. João", estava na decadência, porque o principal deste evento era o baile de roda e eleja não existia. O baile de roda dos "mastros de S. João" não era um baile comandado por uma pessoa de fora da roda como é o "corridinho mandado". É um baile cantado, com movimento automatizado pela música do canto. Os pares vão-se entrelaçando pelas mãos com o par seguinte e movimentando-se formam roda à volta do mastro.

A graça deste baile é o canto. E mais, a espontaneidade dele. Um rapaz canta a sua quadra entremeada do estribilho " que baila e brinca e que dança agora" e uma rapariga respondia-lhe ao consoante do que ele lhe disse na sua quadra. Por sua vez ele responde-lhe novamente e ela também e assim sucessivamente até que houvesse cansaço de improvisação ou um acaso que fizesse acabar o baile.

Quando o baile estava animado e se verificava que o cantor ou cantora estava a atingir o cansaço de improvisação, saltava à liça outro ou outra que agarrava na deixa poética do seu antecessor e continuava o combate. E havia aqui, homens e mulheres que tinham bagagem para uma noite inteira.

Recordo-me de um baile no quintalão da fábrica de conservas AURORA, do Cândido Ventura, era eu miúdo, em que no mesmo baile três raparigas lutaram a cantar com dois homens. Uma vez uma, outra vez outra, e eles revezando-se, ora outro, levaram horas a fio sem se darem por vencidos. Quando parecia que uma estava a esgotar as suas possibilidades, saltava de fora uma outra, enquanto a primeira descansava um pouco, para voltar de novo mais tarde. Havia cantadores e cantadeiras que sabiam de cor inúmeras quadras de outros autores ou até mesmo deles, que aplicavam na altura própria.

Havia vários cantadores, mas os que no meu tempo tinham mais fama e que arrastavam mais gente para os ouvir, era o Coxo Anselmo, carcereiro, o Manuel Inverno e por último o Luís Cagão. O Coxo Anselmo era um homem alto, magro, com um defeito nas pernas que o obrigava a andar arrastando os pés e a gingar muito o corpo. Esta sua maneira de andar, aliada à muita graça que tinha e à muita facilidade de improvisação, faziam dele a grande estrela dos bailes de S. João.

Diziam-me, porque eu já não conheci, que o Dr. Carlos Fuzeta, em rapaz, foi um grande animador destes bailes de roda. Metia-se nos "mastros" e cantava ao desafio com as raparigas, e era dos bons!

Das mulheres não sei o nome de nenhuma. Mas tenho ainda na memória a imagem de duas raparigas desenvoltas, faces rosadas, de voz bem timbrada, com quadras bem rimadas e apropriadas, que lançaram o pânico nos homens que pretendiam fazer-lhes frente num baile a que eu assisti, e outras, e tantas. Era a pujança da mocidade, que fazia desabrochar todo o anseio da alma em amplexo com a beleza da música, da poesia, da dança e do humor popular.

A última abencerragem foi a Ti Maria dos Doces. Voltou a cantar, a pedido, muitos anos depois da primavera da sua vida, já pois, sem o brilho radioso dos seus verdes anos.

Algumas das quadras que consegui fixar:

I

O meu mastro foi acima

Com bandeiras e balões

P 'ra quem passar que diga

Viva o mastro dos "calões "

 

 

II

O rapaz de chapéu preto

Precisa a cara partida

Debaixo do seu chapéu

Pisca o olho à rapariga

 

III

Esta noite choveu papas

Ó moças traguem colheres

Quem quiser ouvir mentiras

Ponhem-se ao pé das mulheres

 

IV

Esta vai por despedida

Por despedida esta vai

Tua mãe morreu sem dentes

De tanto ratar meu pai

 

V

No tempo que os animais falavam

Lá diz o antigo ditado

Os homens ainda mamavam

Com vinte cinco anos de idade

 

VI

Tu julgas que m 'enganas

A mim não enganas tu

Daqui pouco levanto-te as saias

E dou-te açoites no cu

 

"E que baila e que brinca e que dança agora''

Não sei quem foram os autores destas quadras. O que dava graça a estes cantares é que nem o cantador nem a cantadeira sabiam de antemão onde iam actuar para combinarem o repertório a utilizar. Quando o baile de roda se organizava com um ou outra a cantar, o adversário ou adversária saia da assistência ou dos dançarinos que já lá estavam. Era tudo improvisado... E cantava qualquer.

Os "Mastros", altaneiros, vaidosos, enrolados na sua marcela cheirosa, ornados de festões, bandeirinhas, balões, fitas multicores e sobrelevados pela sua charola, eram o mundo de alegria e festa das raparigas e rapazes que à volta dele, separados ou unidos, davam largas à fantasia e sonho das suas almas jovens neste quadra de Primavera aquecida do maravilhoso clima da nossa terra.

Havia "Mastros" por todos os lados. Não havia largo ou troço de rua mais alargado, que não tivesse um "Mastro" e havia alguns de grande fama. A fama era efémera e advinha-lhe da popularidade do seu principal organizador ou do bom lote de raparigas que ele dispunha para dançar. Eram os "Mastros" do Largo do Carolas, do Largo do João da Carma, do Mosaico, do Largo da Fábrica Velha, do Largo da Feira, dos Tanquinhos, da Casinha Velha, do Pires Carago etc., e tantos outros que surgiam em cada ano e desapareciam no ano seguinte.

Desde que houvesse um tocador de Harmónio e o seu companheiro dos ferrinhos, havia baile até altas horas da noite. O corridinho era rei. Mas o corridinho castiço, tocado e dançado como no tempo dos "Mastros" aqui e nos arredores e não o corridinho dançado pêlos ranchos folclóricos de hoje. Parecia que os pares estavam automatizados, formando roda, com aqueles três passinhos laterais e dando uma ou mais voltas no final dos tais passinhos. Nunca vi o corridinho dançado aos saltos como nos apresentam hoje...

Na noite de S. João dançava-se a noite toda. E ao romper da aurora ia-se à cana verde. Formava-se uma coluna de pares e partia-se pelas ruas e estrada fora com o tocador à frente até aos canaviais, e voltava-se sempre a cantar já com o sol acima do horizonte. Hoje seria difícil fazer-se porque a estrada tem muito movimento automóvel mesmo de madrugada.

A população não dançante ou andava a correr, (visitar) os "Mastros" ou sentava-se à porta de sua casa à luz das fogueiras que faziam. O dia de S. João era feriado Municipal e servia para descanso dos folguedos.

Nesta época, Olhão era muito visitada por forasteiros.

Mas tudo acabou. Ou por outra, acabaram com tudo. Começaram por exigir que se requeresse autorização. Depois licenças disto e daquilo, direitos de autor pelas músicas tocadas, etc... Renumeração de tocadores, iluminação, manutenção do recinto (sempre havia que substituir o que se estragava) tornaram-se as despesas de tal modo incomportáveis que os organizadores habituais foram desistindo dos "Mastros" de S. João. Eles que só tinham como receita o lucro na venda de tabletes de chocolate às meninas dos pares que dançavam...

Assim as autoridades olhanenses acabaram com os "Mastros". E pior ainda, tendo feito com que eles acabassem, fizeram com que eles fossem esquecidos e desviada a potencialidade criadora do povo noutros sentidos. (?)

As novas gerações, as gerações que estão hoje na vida, essas ignoram, simplesmente. Entre os folguedos que havia nos "Mastros" e os que são hoje do agrado dos novos, com as suas músicas Rock, não se pode chamar evolução mas sim mutação, e eu não creio que nestas condições se possa reatar uma tradição com continuidade. Só como comemoração, tal como se fez há pouco com a viagem de Bartolomeu Dias. Fez-se essa viagem comemorativa, mas não se vai por isso continuar a viajar de caravela.

Acabados os "Mastros", o povo voltou-se para a ornamentação das suas ruas e muitos grupos de moradores transformaram-nas em verdadeiras sinfonias de cor e luz à mingua de outros saberes, mostraram que o sentimento de beleza e arte existe em todos e no recôndito do seu ser, sabendo expressá-lo na altura própria e da melhor maneira. A poesia não é relegada. Ela lá está, sem técnica, a brotar num beijo de amor e simplicidade através das quadras afixadas nas paredes das casas, algumas delas lindíssimas.

As ruas, as características ruas de Olhão, mormente ruas estreitas e em toda a sua extensão, abobadadas de festões, grinaldas, cadeias de papel entrelaçadas, entremeadas de lâmpadas coloridas, as janelas e as portas abertas, as casas iluminadas e os vasos de flores caseiras trazidos para fora, as ruas pavimentadas de rosmaninho, vistas dos topos de entrada parecem, com os diferentes planos sobrepostos, painéis pintados por mão de pintor bem-aventurado.

Num ano, decerto o mais importante neste aspecto, Olhão chegou a ter mais de cinquenta por cento das suas ruas ornamentadas.

As ruas ornamentadas e os maravilhosos festejos que se realizaram nos anos 60, nas noites dos santos populares, na Avenida, com cortejos de carros alegóricos, com fanfarras, concursos de vestidos de chita, jogos florais e outras alegorias, festejos de rara beleza, deram bem mostra da capacidade realizadora das gentes de Olhão.

Quem se lembra deles...? Como os que realizaram tanto, sendo tão poucos, continua a haver mais nesta terra. O que é preciso é despirem o casaco... e lá vai disto... E tudo sairá belo.

 

Retirado de:

Barbosa, José - Visto e ouvido... em Olhão... reflexões - Câmara Municipal de Olhão, 1993, pp. 73-76