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Uma carta inédita de Francisco Fernandes Lopes

 

Apresentamos uma carta recuperada do espólio de Francisco Fernandes Lopes, existente no Arquivo Municipal de Olhão, que ele enviou em 1948 ao Padre Diniz da Luz, jornalista açoriano, director do Jornal católico “A Voz” (a Câmara Municipal do Nordeste, em S. Miguel, atribui periodicamente o prémio literário Diniz da Luz) e que foi secretário da Comissão de Colocações do Sindicato dos Jornalistas em 1967-68 e parecia ter preocupações sociais, próprias do chamado catolicismo de esquerda.

A carta em questão foi enviada em resposta a correspondência já anteriormente trocada entre ambos.

Esta carta tem o interesse de nos dar uma ideia das dúvidas de Francisco Fernandes Lopes sobre o regime soviético, em 1948, mas também da sua visão sempre desapaixonada que tinha da política e sobretudo dos ismos e dos seus “amanhãs que cantam”, fossem eles os comunismos ou os fascismos.

Ao longo da sua vida, Francisco Fernandes Lopes caracterizou-se politicamente por se mostrar sempre atento - aliás, como para todos os aspectos do mundo que o rodeava - mas sempre sem se comprometer, excepto em duas ocasiões – na sua juventude, onde tomou partido pela República e chegou a escrever artigos em jornais nacionais  e, já no final da vida, em 1961, onde se pôs ao lado do Governo salazarista contra os movimentos de libertação de Angola. advogando que Portugal tinha direitos históricos sobre a sua África, ao contrário das outras potências europeias.

Parece-me que esta sua posição - que nunca foi divulgada – era perfeitamente compreensível na época, perante o horror dos primeiros ataques, em que algumas famílias de colonos foram mortos à catanada em Angola, e perante o facto de Francisco Fernandes Lopes ser um historiador muito sensível à presença portuguesa de 500 anos em África.

Mas vamos ao que interessa - a sua carta ao Padre Diniz da Luz.

António Paula Brito

 

Olhão, 23 de Maio de 1948

Exmo. Sr. Padre Diniz da Luz

Agradeço a carta que entendeu dever dirigir-me, a propósito das minhas considerações ao seu artigo do BAZAR.

Como a frase de Comte lhe mereceu atenção e a arquivou, e não desejo que, tendo de a citar, seja por mim induzido em erro ou adulteração, e como por outro lado não me recordo bem do seu contexto preciso que eu teria citado de memória, fui verificar como a dita frase é, num velho livrinho onde a encontrei. É assim, textualmente:”Le communisme ne comporte d’autre réfutation que la solution du probléme, qu’il pose.”

Reparando agora bem, a frase teria um sentido diverso daquele que à primeira vista pareceria. Sem a vírgula entre probléme e qu’il, pensar-se-ia que Comte entendera que o comunismo pusera o problema, ao qual dava a sua solução; e a maneira de refutar esta solução comunista seria resolver o dito problema por qualquer forma que fosse. Porém a dita vírgula inculcaria outra interpretação: o comunismo não comporta outra refutação senão a solução que ele põe (isto é, a solução comunista) do problema (social, que ele não pôs, porque existe de seu já), problema que não se resolverá senão por essa solução sua, que seria a única.

Comte pensaria assim que o comunismo seria a única e verdadeira solução do problema…

Do que se sabe, como positivo, acerca da realização comunista na URSS, é que essa realização é meramente colectivista. Wilkie bem o mostrou no seu livrinho, e Bruhat bem o repete no livro que lhe indiquei. Economicamente não há pois comunismo nenhum na URSS, no verdadeiro sentido desta palavra; e como V. Exa. saberá por certo tanto se pode o comunismo (económico) combinar com o autoritarismo (político), como com o libertarismo; e o mesmo quanto ao colectivismo, dando-se o caso curioso de um anarquismo colectivista (o de Bakunine) a par do anarquismo comunista (o de Kropotkine e do geral dos libertários). Na URSS ter-se-ia pois uma autoritarismo colectivista e não um autoritarismo comunista.

Mas além de que, há um século precisamente, a palavra comunismo tinha um sentido muito diverso do económico (basta ver bem o famoso manifesto e a sua história) – comunismo, preocupação do interesse comum do operariado de todos os países, por oposição às confinações aos interesses local, regional ou nacional – o comunismo (económico) de hoje na URSS não passa do estado ideal… futuro, como V. Ex. poderá ver bem claramente pelo artigo A doutrina bolchevista da História das doutrinas económicas de Ch. Gide e Ch. Rist (trad. Inquérito, pag, 762 – doutrina esta que não dista de ser a mesmíssima que V. Ex pode encontrar se recorrer ao velho calhamaço de Benoît Malon – Le Socialisme intégral. Aí, tratando da definição histórica do colectivismo, Malon, distinguindo nada menos de nove concepções diferentes que apresenta por ordem cronológica (entre as quais a colinsiana que tem a curiosidade de combinar no seu socialismo racional, o ateísmo com a imortalidade da alma!) bem explica, que para os teóricos do colectivismo revolucionário “le colectivisme n’est que la somme de communisme immediatement réalisable par la Révolution sociale violente “ (pag..303-304).

Dir-se-ia pois que o comunismo (económico) trazido por meios violentos ou pacíficos seria a solução sine qua non do problema social - desde que se tende a pretender que não há-de continuar a haver pobres no meio de nós - pobres no sentido próprio “dos que padecem fome” ou outras necessidades do corpo ou espírito. Claro porém que o caso muda de figura se se pensa que “há-de sempre haver pobres no meio de nós”, porque então ao remédio radical se substituem os seus sucedâneos mais ou menos paliativos implicados na fórmula célebre do velho livrinho de Ziegler “La question sociale est une question morale”… Esses certamente nunca poderão aceitar o comunismo nem o colectivismo que tende para ele como a um limite. Não acha?

Afinal… escrevendo-lhe apenas para rectificar o dito de Comte, fui sendo arrastado a esta lenga-lenga vã acerca do comunismo cujo espectro a um século de distância do manifesto vermelho (ou negro) está de novo a enssombrar a Europa! Perdoará, porque o nevoeiro em que vegetamos é tão espesso que às vezes não deixa de apetecer palestrar um pouco, à boa paz, com pessoas capazes de nos entenderem.

 

E com toda a consideração me subscrevo.

Francisco Fernandes Lopes