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José Dias Sancho

1922. Em primeiro plano e da esquerda para a direita: Francisco Fernandes Lopes e o seu filho Lopinhos, e Roberto Nobre. Em segundo plano, também da esquerda para a direita: Aragão Barros, Ivo Cruz (pai) e  o escritor José Dias Sancho.
1922. Em primeiro plano e da esquerda para a direita: Francisco Fernandes Lopes, Rogelio Buendía e o maestro Ivo Cruz (pai). Em segundo plano, também da esquerda para a direita: o crítico Roberto Nobre, o escritor José Dias Sancho e o embaixador João de Aragão Barros.

 

 

 

Nota: o artigo que se segue é da autoria de Nuno Moniz Pereira (Coronel do Exército na reserva, Sociólogo e Poeta) e foi retirado da revista Stilus nº 2 – Jan./Jun. 2000

 

José Dias Sancho,

A PRECOCIDADE DO GÉNIO NA EFÉMERA CENTELHA DA VIDA

 

Advogado, poeta, escritor, conferencista e crítico literário, poderia ter sido um dos mais proeminentes homens de letras do nosso tempo se a morte não o tem levado tão cedo. Senhor de uma erudição já notável, de um espírito artístico sempre presente e de um invulgar e excelente estilo literário era na altura uma das melhores afirmações da nova geração de escritores algarvios, que iria prolongar as obras de João Lúcio, Bernardo de Passos e Cândido Guerreiro, entre outros, que sempre procurou enaltecer. As belezas do seu Algarve, onde a luz e a cor coexistem em constante apoteose, foram também sempre objecto da sua exaltação.

José Dias Sancho nasceu em S. Brás de Alportel a 22 de Abril de 1898 e faleceu em Faro a 11 de Janeiro de 1929, contando pouco mais de 30 anos. Era filho de José Dias Sancho e de Maria Dias Sancho e irmão de Adelina Nobre casada corn o Dr. Silva Nobre - médico muito dedicado à sua profissão e que tem um busto no pequeno largo da Rua Vasco da Gama em Faro, mesmo frente da casa onde viveu e tinha o seu consultório.

Formou-se em direito na Universidade da Lisboa em 1926 e, depois de nomeado oficial do Registo Civil em Ourique e S. Brás de Alportel, desempenhava interinamente e em comissão de serviço as funções de Conservador do Registo Civil de Faro aquando do seu falecimento.

Depois de uma aventura rocambolesca, José Dias Sancho casou com Maria Helena Pousão Pereira, falecida muito nova, filha do conhecido poeta algarvio Dr. João Lúcio de quem teve urna filha, Maria Luísa que de há muito, vive em Lisboa e se dedica presentemente à poesia, desenho e pintura.

Saliente-se que João Lúcio nunca chegou a conhecer Dias Sancho como genro ou pretendente a genro, visto que quando faleceu em 1918 sua filha Maria Helena tinha cerca de 12/13 anos.

A aventura rocambolesca conta-se em duas palavras. Dias Sancho e Maria Helena apaixonaram-se e protagonizaram uma fuga de Lisboa para o Algarve onde Maria Helena foi entregue à guarda e cuidado da sua futura cunhada Adelina Nobre. Só passados cerca de seis meses é que a mãe de Maria Helena, depois de muito instada, deu autorização para o casamento que então se veio a realizar.

Desde muito cedo que Dias Sancho se dedicou ao cultivo das letras, tendo-se iniciado com o livro de poesias Canções de Amor (1916), colectânea de líricas dos seus 18 anos. A sua acção na imprensa começou no Correio do Sul de que foi um dos fundadores e onde desempenhou o cargo de secretário da redacção. A sua colaboração no Algarve estendeu-se entretanto a outros jornais e revistas e em Lisboa ao Diário de Notícias, Diário de Lisboa, O Século e A Situação onde foi director.

Apenas com 30 anos de idade e no dizer de Lyster Franco era uma das maiores esperanças do intelectualismo algarvio de então, tendo publicadas entre outras as seguintes obras:

- Canções de Amor, 1916; colectânea de poesias de quando tinha 18 anos.

- Ídolos de Barro - 1.° volume (Albino Forjaz Sampaio), 1920.

- Serenata de Mefistófeles, 192 l ; pequeno livro de quadras satíricas.

- Ídolos de Barro - 2.° volume (Júlio Dantas), 1922.

- Deus Pan, 1925; contos rústicos.

- El-Rei Bébé, 1928; novela infantil dedicada à sua filha Maria Luísa "para quando ela souber ler".

- Bezerros de Ouro, 1930; romance publicado postumamente.

 

Apresentamos, em seguida, exemplos ou diversas apreciações (até pelo próprio), gerais e sucintas, de algumas das suas obras ou artigos.

Comecemos, por exemplo, pela descrição que o escritor faz da sua terra S. Brás de Alportel na revista Alma Nova, de Janeiro - Março de 1925:

"Numa prega da beira-serra, onde dizem alguns que nasceu o grande Poeta árabe lbn-Amar, confidente e companheiro de Motamid, príncipe dos moiros e também artista de valia, levanta-se a casaria branca de San-Brás, aldeola humilde elevada às pornpas de vila, que tem como scenário a formosa vegetação das encostas que erguem no cimo moinhos de asas desfraldadas no azul e sonham sob os beijos desta puríssima luz meridional sonhos antigos e pagãos, amores rubros de faunos, nudezes frescas de ninfas e evoés frenéticos de ritos báquicos

San-Brás de Alportel desabrocha, como uma flor de Paisagem, em temperamentos ardentes e coloristas; em devoções de trabalho; em rniragens de aventuras longínquas noutros continentes, demandando a alegria da riqueza; em boculismo; em sadia graça. As mulheres daqui são coradas como rosas e trazem sempre nos olhos um deslumbramento de sol".

Em seguida dos seus livros publicados vamos referirmo-nos aos Ídolos de Barro II - Júlio Dantas, Bezerros de Ouro e Deus Pan.

ÍDOLOS DE BARRO II - JÚLIO DANTAS

José Dias Sancho escreveu dois livros a que chamou Ídolos de Barro com capa de Bernardo Marques. São duas obras de crítica literária, em que foi um dos pioneiros no nosso país, sendo o primeiro sobre a obra de Albino Forjaz de Sampaio (1920) e o segundo sobre Júlio Dantas (1922). Neste segundo volume a sua crítica incide sobre o poeta, o dramaturgo, o prosador e seu estilo ou figurino literário.

Em geral é uma crítica pouco positiva, mas sempre minuciosa e bem argumentada, com muitos exemplos no apoio das suas opiniões.

Sendo uma obra de crítica não nos vamos alongar muito sobre o seu conteúdo que só poderá ser apreciado ou contestado por quem tenha um conhecimento aprofundado da obra de Júlio Dantas. A sua opinião é particularmente negativa ao abordar a obra poética do escritor. Face ao estudo e exemplos apresentados, Dias Sancho considera que Júlio Dantas não é um poeta por temperamento mas por educação mecânica e que da sua poesia ficam-nos apenas algumas manchas de cor. Na sua fase derradeira preferiu então desenhar versos bonitos -- o que consegue plenamente ‑ sem procurar atingir a arte emocional.

No que se refere à obra de dramaturgo, Dias Sancho destaca A Severa que "é uma galeria de tipos bem estudados com figuras de grande relevo decorativo" a quem deu uma "linguagem própria e forte, dum realismo desassombrado".

Criticando negativamente todas as restantes obras teatrais de Júlio Dantas, faz referências elogiosas à Ceia dos Cardeais que considera literalmente como uma obra "leve, elegante, sóbria, com um travo de saudade que nos encanta" e "daí o seu sucesso de livraria honestamente conquistado". No entanto, como muitos outros autores,  põe em dúvida a sua autoria e não a considera propriamente uma obra de teatro pois "o seu valor no tablado está apenas no carácter recitativo" e, portanto, também muito dependente do valor dos intérpretes.

Da análise da obra como prosador Dias Sancho conclui:

"Que a sua prosa é brilhante e rítmica, capaz de tudo, exprimir, colorir e musicar", embora ela se tenha "amaneirado com a necessidade do aplauso do público.

Que a sua tendência mais brilhante é o descritivo revelando plenamente o talento publicista erudito, de linguagem meticulosamente elegante".

Por último quanto ao seu figurino literário, Dias Sancho considera que ele foi "o lindismo"; lindismo na paisagem, nas almas, na história, nos títulos, nos requintes, na "Arte dos bombons", na "Arte dos cabelos loiros" na "Arte de tomar chá"... tudo lindismo.

Para quem conheça bem a obra de Júlio Dantas, este trabalho de crítica literária pode ser muito apreciado, senão obrigatório, quer pela discordância quer pela concordância face às opiniões expressas tão bem fundamentadas. É interessante saber que um dos nossos maiores escritores chamou a este livro a maior afirmação da crítica portuguesa, de Ramalho para cá.

 

BEZERROS DE OURO

É a maior e mais completa obra do escritor. Quando eclodiu o período mais grave da doença que o vitimou, Dias Sancho foi atingido pela cegueira e quando o livro voltou à sua mão depois de dactilografado já não o pôde rever. No entanto foram-lhe lidas as passagens que se julgaram mais susceptíveis de correcção e ele cerrando dolorosamente os olhos que não viam, ditava a respectiva emenda.

Nas palavras do seu autor o romance Bezerros de Ouro passado na primeira república "é uma rápida vista sobre a vida social portuguesa contemporânea localizada na província, num período de agitação social.

Comédia e drama, a um tempo, ele não é mais do que um reflexo da existência humana com todos os seus ridículos, aspirações sôfregas e cruciantes dores". Nele encontra-se "unia ronda de figuras dolorosas no seu natural exagero caricatural, na sua nativa imperfeição de argila humana onde aqui e acolá ficaram visíveis as dedadas moderadoras de Deus. Desenrola-se nas suas páginas uni grande drama moral. Nelas existe a inocência e a perfídia, o carrasco e a vítima, a intriga e o sorriso confiante e até mesmo a morte..."

Na furiosa luta pela vida aqueles que de coração limpo agem e vivem são sempre as vítimas da violência dos cínicos. Diz ainda Dias Sancho "Uma febre aguda devora o organismo social neste estádio do século: a cupidez de dinheiro e de prazeres... ai dos que se lhe atravessam no caminho".

Cumulativamente com tudo isto há a pintura dos costumes portugueses de então e a análise duma sociedade que se dissolve à míngua de carácter e de convicções tornando-se cada vez mais grotescas.

Com as ideias expressas na introdução do seu romance, Dias Sancho parece estar a criticar a nossa sociedade de hoje ou de sempre.

DEUS PAN

Este livro consta de uma dúzia de contos rústicos onde se dá cor não só a personagens típicas das vilas e dos campos como, sempre que surge a oportunidade, se descreve a paisagem algarvia no decorrer do dia desde a alvorada ao pôr do sol.

A prosa deste livro é brilhante, erudita e com um espírito satírico sempre presente. Nada escapa à sua observação. O vocabulário de que se serve é muito rico e variado, quer para descrever situações quer para definir os "heróis" de cada história, quer as suas intenções e procedimentos muitas vezes previamente estudados.

Como exemplo de expressões e imagens que constam deste livro dedicado ao Deus Pan, deus truculento e jovial, seleccionámos algumas pelo seu colorido e sabor:

- Não era de esquesitescas;

- Acanhado de entendimento;

- Não é caso para tanto arruído;

- Em denguices para as mulheres levava a palma ao mais pintado;

- Não me arrenegues mulher;

- Os malteses... romperam a correr desalvoridos e perderam-se entre as ervagens da planície.

- A mulher de volta da lavação mal teve tempo de atirar a canastra para o pial ainda com o chapéu da lufa-lufa sobre o lenço amarelo;

- A tarde era uma moça endomingada muito garrida no chaile cor de fogo do sol posto;

- ar de galo pimpão que todo se empluma pelas mulheres;

- Na fita pálida de estrada assomavam as primeiras casas do povoado;

- sol faulhava nos mamilos da água inchados no peito do mar;

- Os rapazes madraceiam aos grupos na venda da praça.

 

Achando que aos motivos eleitos por Dias Sancho foi-lhes dada urna bela plasticidade novelesca conduzindo os assuntos para o desfecho com muita segurança técnica, Ferreira de Castro destaca deste livro os contos «O Milagre das Paranóias» e os dois últimos «Festa do Maio em Lagos» e «Olhão vila cubista», onde considera que há uma admirável conjugação entre o pintor e o literato.

Ainda segundo Ferreira de Castro, de todo o livro exala uma ironia sã aqui e ali tocada de paganismo - uma ironia sem ardis, sem ciladas, sem grosseiros artifícios.

Mas José Dias Sancho também se salientou pelas suas conferências nomeadamente «O Turismo Algarvio», realizada em Lagos, «Espanha Maravilha» no círculo espanhol de Faro, «O Roteiro do Algarve» trabalho notável lido no Teatro Lethes de Faro onde teceu um belo hino ao Algarve vibrante de luz e cor e ainda A Paisagem, a Mulher e o Amor, de que se fez uma edição em livro em 1925.

Sobre esta última conferência escreve-se no Correio do Sul de 18-7-1925 que "foi uma admirável conferência realizada em Olhão sobre a paisagens, a mulher e o amor nos versos de João Lúcio, Cândido Guerreiro e Bernardo de Passos". Diz-se ainda que "é um trabalho de rigorosa análise crítica de pujante estilo literário e até de ardente dedicação regional que mais uma vez vem pôr em foco as brilhantíssimas qualidades do ilustre moço algarvio. Toda a imprensa do país lhe tem dedicado entusiásticas palavras de apreço que tanto mais são de salientar quanto é certo que José Dias Sancho pelo seu feitio insubmisso e pela sua audácia irreverente não escalou ainda o convencional Olimpo dos consagrados... para as críticas bibliográficas".

Nesta sua alocução o conferencista defende a tese de que a paisagem modela os espíritos à sua imagem e semelhança e por isso dela derivará a idealização da mulher e do amor.

 

Cândido Guerreiro descreve no Correio do Sul de 13 de Janeiro de 1929 os últimos momentos do seu especial amigo. "Apesar de mergulhado há tanto tempo na escuridão da cegueira, logo, nunca intuição que porventura iluminasse a sua hora derradeira, me reconheceu e, murmurando o meu nome, num angustiado esforço disse-me: Levo muitas saudades do meu amigo"!

Depois, num abraço em que me estreitou convulsivamente e em que, junto do meu senti palpitar ainda o seu alto coração despediu-se de mim até à eternidade. Abraçou ainda a esposa bem-amada, suplicando-lhe que não o esquecesse. Foi o último lampejo do seu nobre espírito.

Daí a minutos morria para a vida material e ascendia no mistério e na paz da Morte transfiguradora e sagrada".

Nuno Moniz Pereira (Coronel do Exército na reserva, Sociólogo e Poeta) in Stilus nº 2 – Jan./Jun. 2000

 

Nota final: Sem desrespeitar o texto anterior escrito por Nuno Moniz Pereira, queremos acrescentar mais algumas informações sobre o biografado.

Aos dezasseis anos José Dias Sancho escreveu A Ceia dos Cábulas (paródia à Ceia dos Cardeais de Júlio Dantas), para uma festa do Liceu, onde manifestava já o gosto pela crítica satírica. Aliás, anos mais tarde, voltaria à crítica da obra de Júlio Dantas como vem referido no artigo anterior.

Dias Sancho além de ter sido um dos fundadores do jornal Correio do Sul, colaborou também na Folha de Alte, na Vida Algarvia e na revista Costa de Oiro, de Lagos, onde, entre outros trabalhos, publicou o delicioso conto infantil No Reino dos Bonecos.

Curioso ainda notar que José Dias Sancho parece ter sido o primeiro a publicar uma primeira referência escrita à vila de Olhão como sendo a "vila cubista", no conto Olhão, vila cubista, inserido no seu livro Deus Pan, publicado em 1925. Por isso é considerado por alguns o inventor da frase, embora outros julguem que tal invenção deve ser, pelo menos, partilhada com os seus amigos Roberto Nobre (pintor e jornalista, nascido também em S. Brás de Alportel em 1903, mas a viver em Olhão desde novo) e Francisco Fernandes Lopes.

António Paula Brito, 2011